“Outros Jeitos de Usar a Boca”, de Rupi Kaur

Janilson Duarte
7 Min Read

Apesar do amor continuar a ser um dos grandes temas dos poetas — até mesmo os de Instagram — a forma de versar sobre o sentimento ganhou crueza, novas interpretações e mais apego à realidade que à idealização. Prova disso é o livro de poesia e prosa intitulado “Outros Jeitos de Usar a Boca” – versão brasileira – ou “Milk and honey” – em inglês – publicado em 2014, da autora indiana de 27 anos Rupi Kaur.

“Outros Jeitos de Usar a Boca” é um livro de poemas sobre a sobrevivência, o amor, o abuso, o trauma, a perda, a feminilidade e a experiência de violência. O livro é dividido em quatro partes e cada uma delas aborda um propósito diferente de dor e cura uma mágoa diferente. O livro transporta o leitor por uma jornada pelos momentos mais amargos da vida e encontra uma maneira de extrair delicadeza deles.

Rupi Kaur é uma poeta feminista contemporânea, escritora e artista da palavra falada. Ela é popularmente conhecida como Instapoet, pela atenção que ela ganha online com os seus poemas no Instagram.

A obra fala de amor, sim. Mas dá a mesma atenção à descoberta da forma de amor mais importante: o próprio. “Outros Jeitos de Usar a Boca” ultrapassou um milhão de cópias vendidas num ano e ficou mais de 40 semanas na lista dos mais vendidos do jornal The York Times. Dificilmente vemos um livro de poesia a liderar o ranking de vendas, mas não foi o que aconteceu com este. Depois de ler o livro, os “por quês” do sucesso de Rupi Kaur ficarão mais claros.

Linguagem directa

Os versos são tiros certeiros. A linguagem é directa, honesta e sem formalismos. Alguns não ultrapassam cinco linhas, outros ocupam duas páginas. Apesar da forma simples, a complexidade dos temas de Rupi não é afectada. E nem é preciso dizer: não existe uma só página de monotonia.

“As nossas costas
contam histórias
que a lombada
de nenhum livro 
pode carregar
 
– mulheres de cor “

O livro é dividido entre quatro partes que formam um belo arco narrativo sobre a condição de ser mulher hoje e a complexidade de se relacionar: a dor, o amor, a ruptura e a cura.

Boas histórias são aquelas que partem do particular para o geral. A vida de Rupi, por exemplo, é particular: ela nasceu em Punjab, na Índia, emigrou para o Canadá ainda criança, cresceu numa comunidade de imigrantes no subúrbio de Toronto e é adepta de uma religião cercada de muito preconceito, o sikhismo. As suas vivências são bastante específicas, rodeadas de tabus e regras sobre ser mulher.

“Para as mulheres do sul da Ásia, a mulher precisa de ser quieta e não pode ter muitas opiniões”, disse em entrevista ao jornal The Guardian. Mesmo assim, os poemas criados por ela transcendem essas particularidades, conseguem conversar e tocar pessoas dos mais diversos contextos. Não é necessário ter passado pelas mesmas experiências que ela narra para sentir a frustração de ter um pai alcoólatra, a raiva de ser silenciada ou a dor de viver um abuso.

Na mesma entrevista ao The Guardian, Rupi disse que não existia um mercado para poesias sobre trauma, abuso, perda, amor e cura sob a perspectiva de uma imigrante, mulher e Punjabi-Sikh. De facto, pode até ser que não existisse, mas Rupi criou esse mercado.  Compartilhava as suas poesias nas redes sociais e passou a ver que muita gente se sensibilizava com o seu trabalho.

Vendo o sucesso online dos seus poemas, a jovem lançou o livro de maneira independente na Amazon em 2014. A compilação deu tão certo que em Outubro do ano seguinte a editora Andrews McNeel Publishing publicou uma segunda edição. Na mesma época de 2016 a antologia já estava na lista de mais vendidos do The New York Times.

Em 2015, Rupi envolveu-se numa polémica online e ficou ainda mais famosa. Publicou uma foto deitada, de pijama, e nas suas calças havia uma pequena mancha de sangue. A imagem fazia parte de um conjunto de imagens para discutir tabus sobre menstruação, mas o Instagram tirou a publicação do ar.  Como era de se esperar, a poeta não deixou a hipocrisia passar e respondeu à censura. O Instagram desistiu da decisão e manteve a foto de Rupi.

Na versão original, a antologia chama-se “Milk and honey”. E há inúmeras menções às duas palavras ao longo do livro. Em português ganhou um novo nome mais provocante que inspira muitas outras interpretações.

“como é tão fácil pra você
ser gentil com as pessoas ele perguntou
 
leite e mel pingaram
dos meus lábios quando respondi
 
porque as pessoas não foram
gentis comigo”

Feminismo

Se a intenção de Rupi era fazer com que as mulheres que lessem esse livro se sentissem acolhidas, conseguiu. A antologia tem vários poemas sobre sororidade, empoderamento e empatia, e o último capítulo é uma obra à parte nesse quesito. “A cura” é um abraço, soa como se uma pessoa próxima muito querida nos tivesse escrito e enviado uma carta.

“quero pedir desculpas a todas as mulheres
que descrevi como bonitas
antes de dizer inteligentes ou corajosas
fico triste por ter falado como se
algo tão simples como aquilo que nasceu com você
fosse seu maior orgulho quando seu
espírito já despedaçou montanhas
de agora em diante vou dizer coisas como
você é forte ou você é incrível
não porque eu não te ache bonita
mas porque você é muito mais do que isso

Aquele momento que uma amiga estiver a passar por uma fase difícil, de desamor, baixa estima ou quando não consegue sair de um relacionamento abusivo e nada do que você diz parece fazer efeito? Tente mandar algumas poesias da Rupi ou “Outros Jeitos de Usar a Boca”. São tiros certeiros.

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