Camões: o cão inseparável de José Saramago (e que inspirou um dos seus romances)

Janilson Duarte
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“Entra, chegaste à tua casa”. Foi assim que José Saramago recebeu o Cão de Água Português quando o conheceu por mero acaso. O escritor português, que venceu o prémio Nobel da Literatura, em 1998, faria esta quarta-feira, dia 16 de novembro, 100 anos. O pretexto certo para contarmos uma das maiores histórias de amor da sua vida.

Saramago morreu no dia 18 de junho de 2010, com 87 anos, vítima de uma leucemia, e foi o autor de grandes obras, como “Ensaio sobre a Cegueira”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. No entanto, nenhuma destes livros foi inspirados numa certa criatura de quatro patas que circulava pela sua casa, em Lanzarote, ilha do arquipélago das Canárias.

Isso aconteceu no romance “A Caverna”, em 2000, que destaca uma família de oleiros que vê a sua vida mudar com a chegada de um “centro comercial gigantesco” ali ao pé. Nesta história, Achado é o cão e o companheiro mais fiel do protagonista. Um personagem que serviu para homenagear o próprio animal de Saramago.

“O cão doce e nobre, que nunca aprendeu a comer devagar, porque, até chegar à Casa, tinha tido que lutar contra a fome e o abandono, com a sua gravata branca desenhada no pelo negro”, escreveu Pilar del Río, 72 anos, viúva e atual presidente da Fundação José Saramago, criada em 2007, numa publicação no Facebook.

Camões chegou inesperadamente à casa do escritor, em outubro de 1995, e numa altura pouco oportuna: “No momento em que Manuel Maria Carrilho, ministro da Cultura de Portugal, anunciava a José Saramago que lhe tinha sido concedido o maior galardão literário da língua portuguesa, um cão assustou tanto uma vizinha que ela gritou a pedir ajuda”,

A mulher de Saramago e os amigos que estavam na Casa — como ele lhe chamava — nessa altura foram de imediato socorrer a vizinha, quando se depararam com “um cachorro assustado com o susto da mulher”. Mal percebeu que ali ninguém lhe faria mal, esgueirou-se pela porta aberta do jardim da moradi do escritor e lá ficou.

“Quando Saramago apareceu a anunciar que tinha recebido o Prémio Camões, soubemo-lo, nesse instante, que o cão que tinha encontrado a sua casa iria ter outro nome que o do grande poeta português”, descreveu a jornalista

O Cão de Água Português acabou por morrer em outubro de 2012, notícia divulgada pela Fundação José Saramago. Apesar de o escritor não ter chegado a chorar pela partida de Camões, o cão sentiu de forma profunda a perda do seu tutor. “Quando o cão regressou a casa depois da morte de José Saramago, não conseguiu aceitar a ausência”.

Segundo Pilar: “Esteve inquieto durante o dia, mas, quando chegou a noite, e não viu o dono nem na cama, nem no sofá que ocupava habitualmente, quando uma e mil vezes percorreu o espaço entre os dois quartos, quando percebeu que o dono já não estava nem ia estar, que isso é a morte, uivou, gritou, rasgou-se numa dor que arranha a alma só de descrevê-la”.

Esta tremenda dor deu origem a uma coluna jornalística, criada por um “amigo que estava lá em casa e passou a noite”, chamada “Camões chora por Saramago”. A viúva do escritor tinha apenas o desejo de que os dois se reunissem na “sensibilidade”, juntamente com os outros cães que Saramago tivera: Pepe e Greta.

A escrita como protesto pela causa animal

“Pudesse eu, fecharia todos os zoológicos do mundo. Pudesse eu, proibiria a utilização de animais nos espetáculos de circo”. Não era só o Camões a servir de inspiração para os textos de José Saramago. Sempre muito atento ao que o rodeava, o escritor usava os livros e as crónicas para denunciar todos os casos de maus tratos aos animais.

“Não devo ser o único a pensar assim, mas arrisco o protesto, a indignação, a ira da maioria a quem encanta ver animais atrás das grades ou em espaços onde mal podem mover-se como lhes pede a natureza”, escreveu no seu blogue, em fevereiro de 2009.

“Patéticos cães vestidos de saias, focas a bater palmas da com as barbatanas, cavalos empenachados”. José Saramago ridicularizava sistematicamente o uso dos animais para divertimento público, como o que — no seu entender — acontecia em jardins zoológicos e espetáculos de circo.

O protesto, no entanto, não era a única razão para incluir tantos animais nas suas obras. Além do cão Achado, três cães participaram da história “A Jangada de Pedra” (1986), sendo que um deles, Constante, é descrito como um cão dócil e protetor. Nos romances “Levantado do Chão”, “Ensaio sobre a Cegueira” ou “Ensaio sobre a Lucidez” também existem outros cães que assumem figuras de grande destaque ou simbolismo.

Mas Saramago não gostava de incluir apenas cães nos enredos. O livro “A Viagem do Elefante” é a prova disso mesmo. Aliás, os elefantes já tinham aparecido como animais mais discretos e de grande relevo e importância logo em 1987, quando foi publicado “O Ano de 1993”.

Os elefantes são uma das maiores simbologias da manifestação do escritor contra os maus tratos dos animais, uma vez que são domesticados em zoos e no circo para único prazer dos homens, segundo José Saramago.

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